Disciplina - Língua Estrangeira Moderna

LEM

13/09/2017

Quando você sabe que é bilíngue?

Um dia você acorda depois de uma sesta e não pode acreditar: sonhou em um idioma diferente do primeiro que usou quando começou a falar. Você está no estrangeiro, conta uma piada em inglês, todos riem. E você também. Você congela a imagem. Risos e uma pergunta: já domino esta língua?

Há todo um processo por trás, mas são vários os sinais que nos levam a supor que manejamos um idioma com fluência. O humor, as emoções e os sonhos são alguns dos indicadores que nos fazem pensar que alguém seja bilíngue.

Mas, o que é exatamente um bilíngue? Os limites entre monolíngue e bilíngue são difusos e deram lugar a diversas definições acadêmicas. Por um lado, a definição do linguista Leonard Bloomfield era tão restritiva que ele somente considerava bilíngue quem dominasse uma segunda língua como um nativo. No outro extremo está a definição do também linguista Jim Cummins, que considera bilíngue qualquer um que possa comunicar-se em uma segunda língua, mesmo que em conversas básicas.

No livro El Bilingüismo en el Estado Español, Maitena Etxebarría apresentou sua própria definição do bilinguismo, menos estrita que a de Bloomfield e menos condescendente que a de Cummins: “[...] chamaremos de bilíngue o indivíduo que, além da própria língua, possua uma competência semelhante em outra língua e seja capaz de usar uma ou outra em qualquer situação comunicativa idêntica”. O dicionário da Real Academia Espanhola soluciona a questão com rapidez: “Que fala duas línguas”.

Jon Andoni Duñabeitia, pesquisador do Basque Center of Cognition, Brain and Language (Centro Basco de Cognição, Cérebro e Linguagem) se situa em uma posição mais próxima da segunda definição, por ser mais inclusiva. Este especialista em multilinguismo considera que hoje “grande parte da sociedade (espanhola) é bilíngue” porque, independentemente de sua língua materna, pode “expressar-se em inglês”.

Duñabeitia explica que 'bilíngue' é um termo que “ficou pequeno e precisamos colocar-lhe um nome que realmente nos ajude a entender diante de qual tipo de bilíngue nos encontramos”. Há nomes para escolher, e não são poucos: composto, coordenado, equilibrado, dominante, aditivos, subtrativos, aculturados, monoculturais e biculturais, entre outros. A idade, o nível de competência linguística e o uso de ambas as línguas, ou de uma ou outra em função do contexto, são fatores que nos ajudam a distinguir entre vários tipos de bilinguismo.

Sonhar em outro idioma

Não se trata de sonhar em outro idioma sem mais nem menos, sem entender nada, mas de sonhar no idioma que você está há algum tempo estudando ou praticando e entender tudo no seu mundo onírico. O linguista marroquino enraizado em Barcelona Youssef Rochdi se especializou em bilinguismo e, além do mais, é multilíngue. Rochdi considera que esses sonhos constituem uma prova de que “você pôde estabelecer uma relação com os falantes e tem o vocabulário ativo na sua mente”. Portanto, diz, “já é fácil ter acesso” a esse vocabulário até de maneira inconsciente.

Duñabeitia, que estuda o bilinguismo em nível neurológico, afirma que o contexto é o ponto crucial na hora de pensar e sonhar em outro idioma. Tudo dependerá da língua que utilizamos para falar com uma pessoa com a qual compartilhamos dois códigos, mas também do lugar específico em que usamos um ou outro.

Como exemplo, este pesquisador nos propõe imaginar uma pessoa que fale inglês no trabalho, embora sua língua nativa seja o castelhano. “Se essa pessoa sonha com esse contexto tão específico ou com alguma dessas pessoas, é provável que a língua que recorde do sonho seja o inglês. Isso faz com que a pessoa seja “melhor” ou “mais” bilíngue? De maneira nenhuma”, afirma. Do mesmo modo, algumas pessoas dizem que nunca se lembram do que sonham e nem por isso dominam menos sua língua materna.

Expressar emoções

A equipe de Duñabeitia chegou à conclusão de que as emoções podem variar em função da língua utilizada. Pelo vínculo mantido entre o idioma com o qual crescemos e nosso lado emocional, o habitual é expressar emoções no idioma com o qual crescemos. Se alguém for capaz de se emocionar do mesmo modo em duas línguas, podemos dizer que adquiriu as ferramentas necessárias para poder afirmar que é bilíngue.

Este vínculo afetivo se deve à forma com que assimilamos ambos os idiomas: a aquisição de uma segunda língua costuma se dar no âmbito escolar, acadêmico, laboral e institucional, enquanto a nativa “é adquirida em contextos familiares carregados de emotividade desde a mais tenra infância”. Então ocorre o que este pesquisador chama de “diglossia emocional”, que se produz quando “a diferença entre a carga emocional dos contextos onde se adquirem umas e outras línguas” implica uma distância emocional em relação à língua materna.

Albert Costa recorreu ao conflito moral para demonstrar que a mesma ideia pode despertar nosso lado emocional ou racional em função da língua na qual é comunicada. Seu ponto de partida foi uma questão que punha em xeque os valores dos participantes: perguntaram a eles se lançariam uma pessoa nos trilhos do trem se tal ato lhes permitisse salvar cinco vidas. Entre 20% e 50% afirmaram que sacrificariam uma pessoa para salvar cinco. O estudo mostrou que tendemos a responder a esse tipo de dilema de modo menos emocional e mais racional quando nos é apresentado em uma língua não materna.

Em que idioma insultamos?

O comum é irritar-se e insultar na língua materna. “Quando uma pessoa fala um idioma estrangeiro, ela se irrita na língua materna. Nesses casos vou para a minha língua materna, mas se recorro a uma língua que não seja a materna, é porque a controlo de verdade”, diz Rochdi.

O que ocorre é que o “custo cognitivo” é maior em uma língua estrangeira. “Ou seja, costuma ser mais complicado para nós falar em inglês do que em castelhano, e isto tem um reflexo cognitivo e cerebral claro”, explica Duñabeitia. Falar em outra língua esgota e esse cansaço se reflete na conversa e no uso que fazemos de uma outra língua.

Duñabeitia acrescenta que, às vezes ,“o bom é menos bom e o mau é menos mau em uma língua estrangeira”. Daí que um insulto nos afete menos em uma língua não materna ou que seja mais fácil para nós o usarmos na materna. Albert Costa chegou à conclusão de que insultar em uma língua materna não só é mais cômodo, como também mais prejudicial porque os insultos doem menos quando são ouvidos em outro idioma.

Mas esta regra tem sua exceção: os armênios não insultam em armênio, embora o façam em outros idiomas. Esta atitude parece uma demonstração de amor à língua materna, uma tentativa de não “manchá-la” com o que se considera feio, já que também se negam a ensinar insultos e palavras obscenas a estrangeiros curiosos. Existir, existem, mas são tabu. A tradutora armênia Hasmik Amiraghyan é multilíngue e prefere insultar em castelhano, em catalão, em inglês ou russo, mas se esquiva dos palavrões em armênio. “Uma amiga diz que não pode insultar em armênio por pudor. Para mim seria mais por falta de costume, porque em russo ou em espanhol não me dá vergonha”, diz Amiraghyan.

Piadas e pensamentos

Do mesmo modo que o insulto nos afeta menos em uma língua não nativa, o efeito do humor se perde pelo caminho. Não faz muito sentido contar piadas em outro idioma – traduzi-las – se não for dominado com perfeição e se não se conhece bem a cultura do receptor, porque o humor se esvairia.

“Não vejo tão claro a questão das piadas como fator, como no caso de expressar emoções”, diz Rochdi. O fato de que o humor seja cultural é o que faz este linguista duvidar, pois considera que uma pessoa pode chegar a dominar o humor de outra cultura à perfeição. Prova disso é que Bart Simpson mencione Julio Iglesias: esses acenos à cultura espanhola em muitas séries dos Estados Unidos não aparecem no roteiro. São os tradutores que têm de incorporá-los para adaptar os diálogos ao humor do receptor.

Neste caso, para que esse indicador fosse válido, teria de se tratar de um bilíngue bicultural. Nas palavras de Rochdi: “Chegar a pensar em outro idioma é a demonstração de que você não só sabe gramática e pronúncia, mas parte cultural da língua, como o falante pensa”.

Este linguista especializado em fonética acrescenta também outro fator que poderia indicar um alto nível de aquisição de uma língua: o sotaque. “Se você fala duas línguas, dizem as estatísticas em linguística aplicada que sempre se nota o sotaque estrangeiro na segunda língua”, explica.

Também pode ser revelador esquecer palavras na língua materna, mas lembrar-se delas em outro idioma e utilizar estruturas gramaticais que são incorretas nessa língua. Esses pequenos dramas cotidianos do bilíngue, com frequência, o validam como tal.



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